quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Albert Camus





O autor, jornalista e filósofo francês faria hoje cem anos. Morreu em 1960, sem aviso mas a tempo de deixar obra ímpar e de ser distinguido com o Nobel da Literatura. Recordamos dez lados de Albert Camus

O Professor



Se não fosse Albert Camus, provavelmente não saberíamos nada sobre Louis Germain. Mas o contrário também é verdade: sem Louis Germain, mestre-escola do pequeno Albert, provavelmente o mundo não teria chegado a assistir ao triunfo literário de Camus. Foi graças ao incentivo de Germain que Camus, uma criança oriunda de uma família bastante pobre, pôde prosseguir os seus estudos. O escritor nunca esqueceu a importância do professor, a quem dedicou o discurso de aceitação do Prémio Nobel, em 1957. Ao longo dos anos, Camus manteve o contacto com este homem, a quem disse, em carta datada de 1945, que “era um dos dois ou três homens a quem devia praticamente tudo”. Órfão de pai – morto na Grande Guerra –, Camus projectou em Germain a figura paterna, que na sua obra desaparece para dar lugar à mãe.



A Mãe



Eram estas as dez palavras preferidas de Camus: mundo, dor, terra, mãe, homens, deserto, honra, miséria, Verão, mar. De todas, “mãe” será a mais importante. Sobretudo por uma ainda hoje polémica resposta do escritor a uma questão de um estudante argelino, em Estocolmo, quando recebeu o Prémio Nobel. Nessa altura, questionado sobre a justiça da luta pela independência do povo argelino e o terrorismo contra civis, Camus respondeu que acreditava na justiça, mas que poria sempre a sua mãe em primeiro lugar. Muitos acusaram-no de preterir o universal em favor do pessoal, denunciando o carácter antikantiano da sua frase. Mas nesta escolha – controversa, é certo – vê-se igualmente um imperativo ético em acção, erguer uma barreira contra a violência bem-intencionada e que tantas vezes descarrilou para a barbárie. Vê-se, em suma, o humanismo radical de Camus.



Guarda-Redes



Uma das características fascinantes da personalidade de Camus é uma aparente simplicidade sob a qual se oculta uma mente inquieta e exigente. Se, de certa forma, essa característica se plasma na sua escrita – límpida e dura, sem ornamentos desnecessários, ao serviço de um pensamento claro e profundo – é na sua vida que ela se manifesta com mais pujança. Em comparação com outros intelectuais da altura, muito dados a abstracções e a conceitos ideológicos impostos à realidade, Camus tinha a vantagem de ser um filho legítimo do povo. Nada ilustra melhor essa condição genuína que o facto de, ainda na Argélia, Camus ter sido guarda-redes de um clube de futebol universitário. Como escreveu Michel Winock, Camus “não tem de descer ao povo porque faz parte dele”.



A Imagem



A importância da imagem no culto camusiano não deve ser desprezada. Quando Camus visitou os Estados Unidos, a propósito da publicação da edição norte--americana de “O Estrangeiro”, a comunicação social não hesitou em compará--lo com Humphrey Bogart, criando a imagem duradoura do existencialista cool. De facto, ainda hoje Camus beneficia desta aura de sedutor sereno, sendo visto como uma espécie de detective elegante dos meandros da existência e das complexidades filosóficas. A morte precoce, quando tinha apenas 46 anos, num acidente de viação, apenas reforçou a dimensão quase cinematográfica do mito: o de um homem que personificava a aliança perfeita entre um pensamento encantador e um aspecto inteligente, o equilíbrio alquímico entre moral e rebeldia.



O Estrangeiro



“Hoje a mãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem.” As duas primeiras frases de “O Estrangeiro” estabelecem de imediato um tom de indiferença e de alienação que, a par de certas imagens de Kafka, é provavelmente o mais perto que a literatura do século xx esteve do absurdo da existência. Aqui a questão não é ver o homem soçobrar perante o peso da sociedade moderna (o trabalho repetitivo, a solidão das metrópoles, etc.), mas ter de lidar com uma angústia mais ancestral, primitiva, básica; a angústia que está no cerne das grandes questões filosóficas e religiosas. Sartre disse que o título poderia ser “Nascido no Exílio” (tomado de empréstimo de um outro livro) e a expressão não podia ser mais exacta para resumir uma obra que, por sua vez, é um resumo da condição humana e de todo o desespero feliz e cheio de esperança que nela existe.



O Jornalista



A faceta jornalística de Camus não contém em si nada de surpreendente. Aí vemos o mesmo homem exigente, a professar uma moral que não é moralista, uma moral prática que ele desejava ver corporizada numa classe de jornalistas independentes e comprometidos (que “tomam partido” sem se tornarem “partidários”, cf. “O Século dos Intelectuais”). Entre 1943 e 1947, Camus, enquanto chefe de redacção do “Combat”, um dos muitos jornais de esquerda da época, apontou o caminho para um jornalismo emancipado do poder do dinheiro e que assumisse a sua vocação de farol cívico. Com o fim da guerra, o jornal foi perdendo influência, numa altura em que o próprio Camus já estava mais disposto a investir na sua carreira como escritor e como editor na Gallimard. No entanto, a lição da sua intransigência ética é um bem precioso que todos os jornalistas devem ter presente.



A Personagem



Uns talvez se lembrem do Dr. Bernard Rieux, de “A Peste”, outros não hesitarão em escolher o anti-herói Meursault, de “O Estrangeiro”. Jean-Baptiste Clamence, o juiz-penitente de “A Queda” não é uma má escolha e, se a opção for menos óbvia, talvez se possa indicar a presença fantasmagórica da mulher de Rieux. No entanto, para um aspirante a escritor, a personagem mais marcante de Camus tem um papel secundário em “A Peste”: Joseph Grand, o funcionário municipal e escritor nas horas vagas que não consegue passar da primeira frase do romance perfeito que quer escrever. Grand procura atingir a perfeição sonora, o equilíbrio polido da forma, um significado profundo e, com tão elevada fasquia, nunca consegue completar essa frase impossível.



Camus vs. Sartre



E pensar que tudo começou numa agradável troca de elogios e vénias literárias, que, porém, já continham as sementes da acrimónia futura. Apesar da extensa e elogiosa crítica que Sartre dedicou a “O Estrangeiro”, em 1943, Camus, com a sua perspicácia mediterrânica, notou logo ali um “tom ácido”. Mas as coisas iriam piorar. Já depois da guerra, os dois amigos afastaram-se, assumindo posições diferentes em relação ao comunismo: Camus mais crítico com Moscovo, Sartre mais entusiasmado com o regime soviético. Camus viria a receber o Nobel antes de Sartre, que, em 1964, recusou o prémio com o argumento de que um escritor não se devia tornar “uma instituição”. Se não uma instituição, Sartre tornou-se pelo menos uma estrela da intelectualidade de esquerda, mas hoje em dia é Camus quem recolhe os louros literários.



Críticas



A obra de Camus já sofreu várias tentativas de diminuição pública. A mais comum é a que procura obliterar os méritos literários da obra justificando o seu sucesso, a devoção dos leitores, unicamente com o fundo moral da mesma, transformando o autor numa espécie de promotor de um culto laico do qual ele seria o santo padroeiro. Sem dúvida que a obra de Camus não recusa a questão moral (não confundir com moralismo), mas não só o próprio rejeitava esse papel de profeta laico como a clareza do seu estilo, em vez de ser apontada como uma insuficiência, tem de ser entendida como uma afirmação simultaneamente ética e estética. Sontag podia dizer, com alguma petulância, que “não há em Camus nem arte nem pensamento de altíssima qualidade”, mas quando relemos “A Peste” ou “O Estrangeiro” ficamos com a certeza de que nenhum outro escritor moderno se aproximou tanto do coração do homem, do seu centro moral.



Defensores

“A grandeza de Camus consiste em ter unido uma ética inflexível a uma inexaurível capacidade de felicidade, de viver a fundo a vida, como um baile popular ou um dia de sol à beira-mar, até na sua tragicidade enfrentada sem rebuço, recusando qualquer moral que reprima a alegria e o desejo. Camus tem um sagrado, religioso respeito pela existência, o qual o impede de qualquer transcendência, metafísica ou política, que pretenda sacrificá--la a fins superiores.” Num dos textos de “Alfabetos”, o escritor italiano Claudio Magris mostra, em poucas linhas, que a dimensão humana de Camus não era apenas retórica, mas uma força viva que se manifestava na sua prática literária e jornalística. Por sua vez, o filósofo espanhol Fernando Savater sossega-nos quanto a eventuais receios de um reencontro com a obra do escritor francês: “Camus não tem uma única ruga. Mais nosso que nunca: mais equânime, mais valente, mais tonificante e lúcido que nunca.”

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