quarta-feira, 25 de julho de 2012

O Culto do Espirito Santo em Portugal

O CULTO DO ESPIRITO SANTO EM PORTUGAL - UMA CONTRIBUIÇÃO ETNO-HISTÓRICA


por Antonio Jose Menezes

O culto português do Espírito Santo não tem equivalente no mundo católico. Era específico da Estremadura e das Beiras (em 1928, o bispo da Guarda proibiu os católicos de participar nas «folias» do Espírito Santo, as confrarias que mantinham o culto). O culto está mais próximo da religião judaica do que do Novo Testamento. Os judeus beirões do princípio do séc. XX diziam «O Espírito Santo é nosso, não é deles [católicos]» (1) . De facto, conhecendo os textos que eram lidos nas sinagogas portuguesas no Dia de Pentecostes (Bíblia, Talmude e Zohar) concluímos que este culto foi cripto-judaico. O Talmude é uma colectânea de comentários bíblicos; o Zohar (ou Livro do Esplendor) é um texto exotérico atribuído ao rabi ibérico Moisés Maimónides, são textos ricos em espiritualidade e em devaneios messiânicos e esperancistas. O culto do Espírito Santo pode ter sido uma teatralização dos temas referidos nos textos lidos nas sinagogas nesse dia: proibida a religião judaica, esses temas passaram a ser encenados numa festa de rua, cripto-judaica, difarçadamente católica (2) …

Convém contradizer o mito erudito segundo o qual foi Santa Isabel quem instituiu este culto, em Alenquer. Os cultos não foram instituídos pelos reis nem pelas princesas (isso é dos contos infantis). Têm origem em dinâmicas espirituais e simbólicas, em sobreposições de cultos e de calendários, e na criatividade popular. Há capelas e referências a confrarias do Espírito Santo anteriores à Rainha Santa, nomeadamente em Santarém (3). No entanto, pode um monarca ou uma princesa ter aderido preferencialmente a um culto específico, mas isso não era razão suficiente para que ele se impusesse.

A actual expressão Espírito Santo refere-se à terceira pessoa da Trindade cristã. No entanto, ela é a tradução do hebraico Ruah Kadosh que significa «espírito (ou sopro) santo, divino». No Antigo Testamento a expressão aparece centenas de vezes para significar as «manifestações de Deus»: criador, provedor da sabedoria, inspirador da mente… Os judeus não podem pronunciar o «nome próprio» do Deus bíblico (que nós dizemos Yahwé), pelo que nomeiam-no pelos seus atributos: o Divino, o Senhor, o Bendito, o Espírito Santo…

ORIGEM BÍBLICA – O dia do Espírito Santo é no domingo de Pentecostes que, em grego, significa «50 dias» (7 semanas, depois da Páscoa). Mas a festa é do Antigo Testamento, instituída por Deus: «A partir da Páscoa contarás 7 semanas. Celebrarás a festa das Semanas em honra de Yahweh teu Deus. E levarás ofertas em proporção com o que o teu Deus te deu. Na presença de Yahweh divertir-te-ás, tu, os teus filhos e teus servos, os sacerdotes e os estranhos, as viúvas e os órfãos que vivem no teu meio» (Deuteronómio 16: 8-11). A Páscoa era (como hoje) a primeira lua-cheia depois do equinócio da Primavera. Uma festa à deusa-Lua. O 7 é um número sagrado de carácter lunar (as fases da lua duram 7 dias) e significa «completude», «plena realização». Segundo os historiadores da Bíblia, os hebreus adoptaram da religião dos cananeus (fenícios) a sua festa do Pentecostes – tal como a Páscoa que era uma festa à primeira Lua-cheia da Primavera. O culto da Lua transferiu-se para o Deus bíblico. Jesus também se deslocou com os seus discípulos a Jerusalém para a celebração do Pentecostes, donde a festa cristã.

Nos primórdios bíblicos, era uma festa agrária; chamava-se festa das Semanas, das Ceifas, da Fartura… Depois adquiriu a simbólica da Aliança entre o povo e Deus: festa do Dom da Lei, da Renovação da Aliança ou dos Juramentos.

FESTA DAS CEIFAS – Nas sinagogas portuguesas, neste dia lia-se o Livro de Rute, sendo Rute uma estrangeira que foi avó de David donde provirá o Messias. A acção do livro desenrola-se nas ceifas e numa eira. O livro também lembra a obrigatoriedade da solidariedade social: Rute, imigrante e pobre, foi encontrada a respigar os restos duma ceifa e teve os favores do proprietário; os dois uniram-se durante a noite, na eira. Na memória colectiva dos beirões, «a festa do Espírito Santo é por ocasião das ceifas ou do corte dos fenos», e na região de Viseu «é quando começa a secar a raiz ao pão [= trigo]». O Pentecostes foi a festa das Ceifas.

A POMBA – O ícone do culto é uma pomba que, para os cristãos, representa o Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade. No entanto, nos comentários da sinagoga, a pomba representava a «Shekina de Deus» (a sua «face maternal») que cobre com as suas asas os eleitos. Rute, que era estrangeira, foi acolhida «sob as asas da Shekina», como uma ave cobre as crias; Também se referem a «duas pombas»: a que já veio (o rei David) e a que há-de vir (o Messias). Num dialecto bíblico (aramaico), «Deus» diz-se Yahu que também significa «pomba». Max Weber (sociólogo, mas também historiador do judaísmo antigo) diz que a pomba «é o símbolo de Israel perseguido» e que, no Talmude, é considerada a «mensageira do Espírito divino» (4) . Diferentemente disso, o Espírtito Santo que, no Pentecostes, desceu sobre os apóstolos no cenáculo representou-se por «línguas de fogo», não por uma pomba. Portanto, a Pomba é mais cripto-judaica do que cristã.

O REI ou IMPERADOR – Em algumas freguesias do Litoral (e em Sintra/Penedo) a personagem central do culto é o «imperador ». Ele incarna o Divino. A figura de «rei» já se encontrava nas leituras da sinagoga e referia-se ao Messias-rei. Lia-se este texto: «[...] O rei que há-de vir é da descendêcia de David. O Espírito do Eterno [= Espírito Santo] falará por ele. A palavra de Deus estará na sua boca» (5) . A festa judaica do Pentecostes também era a «festa da Realeza» (de Deus, de Israel ou do Messias) ou da Renovação da Aliança. Os comentários referiam-se à ascendência do Messias (Rute foi avó do rei David donde provirá o Messias judaico) e ao Messias-rei. Entre os judeus da Diáspora, o Pentecostes também se chamou «festa da Realeza de Israel, de Deus ou do Messias». O costume de eleger ou nomear um «rei» para presidir a um bodo ou refeição ritual também se encontra em documentação profana antiga, nas comunidades judaicas da diáspora, fenícias (cananitas) e púnicas (6) .

A COROA – O pendão da festa contém uma coroa. Nos comentários da sinagoga, a coroa era a Aliança entre o povo e Deus. «Desceram do céu duas coroas: uma pela promessa de cumprir (por parte do povo) e outra pela promessa de realizar (por parte de Deus). Na corrente judaica da Cabala, na essência de Deus há dez esferas, duas das quais têm o nome de «coroas». Moisés Cordobero, judeu ibérico (séc. XII), diz que a esfera inferior é «a própria Shekina», a «filha do Rei», que se exilou com o povo de Israel e à qual os fiéis que praticam os preceitos da Promessa se unem como numa relação conjugal» (7) . A festa do Espírito Santo de Tomar também se chama «Festa da Coroa».

BODO – A festa do Espírito Santo é, fundamentalmente, um bodo de pão. Oferece-se pães, ou uma farta refeição de carne, a quem vier – um dos mais belos ritos populares. Diz-se em muitos sítios que este bodo é em «cumprimento duma promessa antiga» que fez a povoação para se ver livre duma praga agrícola ou duma epidemia. A «promessa antiga» pode ser a «Antiga Aliança» firmada no Sinai entre Deus e o povo eleito. O bodo já vem na Bíblia, referido várias vezes para o Pentecostes: «Trareis das vossas casas o pão que será oferecido em gesto de apresentação [...]. Oferecereis, além do pão, sete cordeiros de um ano, um novilho [ou touro, segundo as traduções] em holocausto a Yahweh [...]. É uma lei perpétua para os vossos descendentes onde quer que habiteis» (Levítico 23:15-22) ». E: «Farás sacrifícios de comunhão [= ágapes, bodos] que tu comerás aí mesmo; e tu divertir-te-ás na festa na presença do teu Deus. Escreve nestas pedras todas estas palavras, grava-as bem» (Deut. 27:7-8). Note-se a ordem: «grava bem estas palavras», um preceito importantíssimo… Os bodos rituais são um modo de renovar as boas relações entre habitantes vizinhos, entre tribos vizinhas e entre o povo e o seu Deus.

TRADIÇÕES EXOTÉRICAS – O conceito de «Espírito Santo » é muito fértil em devaneios místicos e em teorias espiritualistas. Em hebraico, ruah tanto significa «vento» como «espírito». Jesus disse: «O vento [ou o Espírito] sopra onde quer, assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito [ou do vento]» (João 3:8). No conceito «Espírito Santo» cabem muitos projectos religiosos: inspirações proféticas, ideais messiânicos, mistérios simbólicos, segredos iniciáticos… No culto beirão encontramos, em 1960, a menção da transmissão dum segredo: o mordomo cessante transmitia um segredo ao sucessor, ambos fechados na capela, mas cujo conteúdo se desconhece (porque era segredo…). Segundo um autor espanhol, nas sinagogas sefarditas (de origem ibérica) da Tessalónica (Grécia) onde ainda se fala português, por volta de 1950, durante as cerimónias do Pentecostes os fiéis formavam uma procissão com a Bíblia e pronunciavam mutuamente ao ouvido «um segredo» que consistia na palavra «arroz» (8) . Ora, dizemos nós, o observador espanhol pensou ouvir a palavra «arroz» quando o que os judeus diziam era a palavra aramaica «rôz» que quer dizer «segredo»… Nas comunidades judaicas dos Essénios (a que, segundo alguns, Jesus e João Baptista pertenceram), os novos adeptos eram iniciados na festa do Pentecostes e a quem era lido o capítulo III do Livro bíblico de Habacuq que começa assim: «Yaweh, eu aprendi o teu nome! Yaweh, eu temo a tua obra! Fá-la reviver no nosso tempo!…». Quer dizer, aprendiam a pronúncia exacta do nome do Deus bíblico – yahweh – que os leigos (como nós…) desconhecem ou pronunciam arbitrariamente (Yaweh, Yauwa, Javé, Jeová…). Nas sinagogas ibéricas, o santo nome era ensinado pelo rabi ao iniciado, ao ouvido, no meio de grande algazarra da assistência (para que ninguém mais pudesse ouvir).

TOURADAS – O abate de touros era frequente – e necessário – no adro do templo de Jerusalém (tal como noutros templos do Médio Oriente) para holocausto à divindade e para o bodo do povo. O nosso culto do Divino associa-se a touradas. No séc. XVI as confrarias do Espírito Santo (ou «do Bodo») de Leiria possuíam reservas ou estábulos para garantir carne para o bodo, e havia touradas «com reses bravas». As touradas ibéricas podem vir desse ritual de sacrifício. A função dos nossos forcados pode vir do acto corajoso de pegar no touro pelos cornos a fim de o sacrificador poder espetar o cutelo. As capelas portuguesas – tal como o Templo de Jerusalém – foram pólos de arraiais taurinos. E vimos que a alegria era obrigatória: «Divertir-te-ás na festa, tu, os teus filhos, os teus servos e os estrangeiros que moram no teu meio»… Nas religiões do Médio Oriente, o Criador podia ser representado por um touro. O Deus bíblico também foi representado, na Samaria, por um touro, tendo até sido encontrada uma inscrição com a expressão «oghel yaou» (o bezerro é Yahweh) (9) . O Deus-touro agradava-se com sacrifícios de touros.

O culto do Espírito Santo é dos mais belos elementos do património imaterial português. A ausência de dogmatismo e de liturgias autoritárias permite que o culto seja espiritualmente fértil («o espírito sopra onde quer»). É universalista, pode ser atribuído a qualquer divindade ou tendência espiritual, ecuménico e transcultural. Nas Beiras interiores desapareceu. No distrito de Leiria ainda se mantém em algumas Freguesias e Concelhos. Persiste com muito dinamismo nos Açores e por fim em Sintra- Penedo.

NOTAS:

1 – Leite de Vasconcelos, Etnografia Portuguesa, IV, Casa da Moeda, p. 223

2 – O Professor Doutor Moisés Espirito Santo, Tratou deste culto nas Beiras, detalhadamente, em Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, Assírio e Alvim 1988. Aqui limito-me a algumas referências

3 – Em Santarém: M.C. Rocha Beirante: Santarém Quinhentista, Universidade Nova de Lisboa, 1980, p. 134.

4 – Max Weber, Le Judaisme Antique, Paris, Plon, 1970, p. 536

5 – Ephémérides de l’année juive, Paris, C.L.K.H. 1981, n.º 4, pp. 409 e seguintes

6 – Bezalel Porten, Archives from Elephantine, pp.153-182.

7 – Moisés Cordobero, Le Palmier de Debora, Paris, Verdier, 1985, cap. IX.

8 – Michel Molho, Usos y costumbres de los Sefardies de Salónica, Madrid, Inst. Arias Montano, 1950, p. 225.

9 – Bertholet, Histoire de la civilisation d’Israel, Paris, Payot, 1929, p. 390

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