quarta-feira, 23 de março de 2011

A ultima revista Nova Águia dedicada a Fernando Pessoa


Não existe – porventura nunca existirá – uma grelha analítica que dê conta da totalidade da obra de Fernando Pessoa, o maior enigma da história da cultura portuguesa do século XX. Consciente desta intrínseca impossibilidade, Nova Águia não podia, no entanto, deixar de dar um contributo para um melhor esclarecimento da obra do autor maior da cidade de Lisboa e da língua portuguesa na primeira metade do século XX. Obedecendo aos quesitos teóricos da revista refundada por Teixeira de Pascoaes, desejámos voluntariamente que o contributo do nº 7 da Nova Águia não partisse de leituras vanguardistas, que ligam legitimamente Pessoa ao modernismo português, mas, diferentemente, de leituras vinculadoras da sua obra aos veios nervosos da cultura portuguesa, toda a cultura portuguesa, sem preconceitos nem limites.

Entre a morte do pai, a partida para Durban, África do Sul, e o regresso definitivo a Portugal, em 1905, Fernando Pessoa sofreu um triplo e anormal bloqueamento: familiar, provocado por uma radical ruptura na constituição do seu agregado familiar; linguístico, com a abrupta mudança do universo cultural de língua portuguesa para o de língua inglesa; pessoal, efeito dos dois anteriores, provocando um forte isolamento e ensimesmamento, comprovado por inúmeros textos autobiográficos.

No regresso a Portugal, este triplo bloqueamento, solidificado, manifesta-se na inadaptação escolar na frequência do curso de Filosofia no Curso Superior de Letras, no afastamento dos colegas, no desastre financeiro da tipografia Íbis e na inconformidade com a situação política portuguesa (greves de estudantes em 1907, nas quais, segundo o meio-irmão de Pessoa, este terá participado; “ditadura” de João Franco no mesmo ano; regicídio em 1908 e implantação da República em 1910). Do ponto de vista literário, o adolescente Pessoa é atraído pelo exotismo de vida solitária do poeta seu tio, general Henrique Rosa, e pela descoberta dos simbolistas franceses. Na África do Sul, Pessoa dá nascimento a múltiplos e tímidos “eus”: James Faber, Alexandre Search, Charles James Search, Charles Robert Anon…, todos esteticamente inclassificáveis: pseudónimos?, semi-heterónimos?, pré-heterónimos?, ou, como os classifica Robert Bréchon, “pseudópodos”? A solução parece assentar neste último conceito. Com excepção de Alexandre Search, de obra com alguma consistência, espécie de elo de ligação entre os estudos clássicos ingleses e o modernismo europeu, todos os outros “eus” se constituem como momentos autorais de intervalo, pontos de apoio psicológicos e estéticos na passagem entre a adolescência e a maturidade poética, esta caracterizada pelo duplo efeito de despersonalização própria e de cristalização do eu nos três heterónimos principais da sua poesia. Terminara o tempo dos Search (busca), dos Anon (anónimo) e dos Jean Seul () – Pessoa vazara definitivamente o seu eu em três principais “eus”, correspondentes a três visões poéticas do mundo, que culminarão com a “emergência” do “dia triunfal” de 8 de Março de 1914 e a irrupção de Orpheu, em 1915.

Através do dossier apresentado, sentimos ter-se tornado mais forte a análise cultural (não estritamente poética ou literária) da obra de Pessoa, com relevo para a aproximação à saudade, à consciência cultural da língua e aos aspectos esotéricos – esse “Adamastor” de que os pessoanos pós-modernistas tanto receiam.

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