quinta-feira, 25 de julho de 2013

AGOSTINHO DA SILVA EM SESIMBRA – Cartas a António Telmo











AGOSTINHO DA SILVA EM SESIMBRA – Cartas a António Telmo


Os anos do Brasil (1966-1968) são os do grande encontro intelectual de Agostinho da Silva com António Telmo (ao centro, na foto, na Universidade de Brasília, ladeado por sua mulher, Maria Antónia, e pelo autor de Reflexão), período em que o filósofo portuense se torna padrinho de baptismo de Anahi, filha do casal nascida em terras de Vera Cruz. Mas atrás de tempos tempos vêm e com eles outros lugares. Telmo é quem primeiro regressa à Europa, estacionando em Granada por longos meses, graças a um daqueles inusitados benefícios sabáticos em que Agostinho era pródigo. Sesimbra, porém, já o aguarda, com Tomar de permeio, como quem por aqui passasse para melhor fazer germinar o aluvião templarista da História Secreta de Portugal. Agostinho segue-lhe os passos. De perto, no espaço e no tempo. Logo em 1969, em plena Primavera marcelista, retorna à Pátria. Em Dezembro desse mesmo ano, encontramo-lo a proferir espantosa palestra na Biblioteca Municipal de Sesimbra, de que António Telmo se tornara entretanto o primeiro Director. Fala no âmbito de um ciclo de conferências que as autoridades locais do Estado Novo se hão-de apressar a encerrar. Amiúde, vem e volta a Sesimbra, onde de cada vez se queda por dias ou horas, primeiro no apartamento que Maria Violante detém no Bloco do Moinho, mais tarde no da Falésia de Argéis. Soaria presunçoso dizer que Agostinho queria estar perto de Telmo, com quem, em Brasília, empregara em conversas excelentes longas horas caminhantes. Mas parece inegável que da capital do Brasil para a da Arrábida não há visível solução de continuidade no convívio. É ainda com António Telmo em Sesimbra (antes de abalar para a gesta revolucionária da Escola do Redondo, cuja visão, consoante se infere da correspondência epistolar, tanto impressionaria Agostinho e Violante) que o autor de Um Fernando Pessoa inicia a série de colaborações em O Sesimbrense sob o título Onde a terra se acaba. Bem certo que a distância pesa. Bem certo, pois, que esse convívio sesimbrense se há-de ressentir, desde então, das ausências prolongadas de Telmo no plaino transtagano, sem jamais, todavia, se perder totalmente. Bem certo que é à mesa do Café Águias de Ouro, em Estremoz, que há-de ser escrita a História Secreta. Mas se o retiro duradouro no Alentejo propicia o isolamento, a solidão e o silêncio indispensáveis à obra criadora de quem medita, pense e escreve, o eterno retorno arrábido do filósofo de Arte Poética renova-lhe, em cada momento de inquietude, as fecundas infusões de um diálogo em que Rafael Monteiro e António Reis Marques, entretanto chegados ao convívio agostiniano, se tornam partícipes, seja na Vila ou no Castelo. A carta de Agostinho da Silva para António Telmo, datada de 27 de Junho de 1977, que agora republicamos – saiu já a lume em António Telmo, terceiro volume dos Cadernos de Filosofia Extravagante –, e em que justamente se aborda a História Secreta, é a este propósito um documento precioso e esclarecedor.

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27.6.77

Caríssimo António Telmo

Penso que o seu livro, que li logo num dos primeiros exemplares, emprestado pelo nosso Rafael, tem três aspectos, implícitos e/ou explícitos: o de que só é válida a história de Portugal que coincida com o Centro do Mundo ou, por outras palavras, que sirva a política de Deus; o de que só cumpre plenamente o seu dever de Português quem nisto se inicia, qualquer que seja o rito em que o faz e quem, pelo que seja e faça, restitua ao Templo a pedra retirada ou lhe retire o pseudónimo (ou heterónimo) com que, no Templo, o salvou D. Dinis (e esta parte do seu livro se liga à conversa em Sesimbra no dia 1 de Janeiro deste 77); a decifração de tudo isto através do documento de arquitectura ou de escrita, para mim o aspecto de menor interesse, já que não podendo pensar o mundo sem Deus, não creio válido nenhum dos argumentos com que lhe pretendem provar a existência: provar é para o racional, e não é esse o alicerce do seu livro, nem o de Portugal. Deu-me grande gosto ver que coloca a fractura de Portugal no século XVI, e ainda maior o de ficar pensando que a sua data é mais certa do que a minha (1578). Esta última só tem a vantagem de chamar a atenção para um facto em que, acho eu, se não reparara bastante: o de que a história do País se transfere nessa altura para o Brasil: os iniciados ou iniciáveis para lá passaram; como, no século XIX, o que restava passou à África (basta lembrar Mouzinho). Quanto a 78, vou julgar [que] ele marcará o fim da maré baixa e o bater da primeira vaga da preiamar. Tudo será ainda mais difícil, claro está, mas brilhará, esperemos, o que já é muito. Um dia Amigo, conversaremos sobre tudo isto. Até lá, o grande abraço grato, por mim e pela Nação, do

A.S

A medida nem sempre foi a da visita de médico, qual a que Agostinho da Silva descreve no final da carta a José Flórido, que, retirada de Um Agostinho da Silva, agora republicamos. Desde o início da década de setenta do século passado, o filósofo vinha a Sesimbra algumas vezes por ano, para aqui se demorar variamente. Não raro, era todo o Agosto que lhe transcorria na Piscosa, quando Maria Violante e as sobrinhas por cá estacionavam em vilegiatura. Mas António Reis Marques testemunha-lhe igualmente, ao longo das quatro estações, outras permanências mais ou menos prolongadas, ora destinadas ao recolhimento meditativo na solidão pacífica do Bloco do Moinho ou, mais tarde, do apartamento na falésia de Argéis; ora ao convívio com os Amigos, onde, com António Telmo, avultam o já referido Reis Marques, Luís Paixão e, sobretudo, esse extraordinário Rafael Monteiro de que a missiva agostiniana nos dá um retrato grande: impressivo e impressionante. Chegado de Lisboa no carro de carreira que o deixava na Avenida da Liberdade, esse prolongamento urbano do axis mundi sesimbrense, e logo que instalado nos aposentos, Agostinho fazia-se andarilho, palmilhava, infatigável, os caminhos sem parança, do Moinho ou da Falésia derivando para o Castelo, trepando ágil o morro íngreme onde o esperava a ridente bonomia de Rafael.

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22.6.78

Caríssimo Amigo

Estava para lhe escrever, a dizer quanto gostei de estar com o “grupo de Belém”, quando chegou sua carta com o convite para Sesimbra. Foi uma grande ideia: além do interesse na discussão ou exame de uma série de problemas, põe-se, e sobretudo, o da vinda de Rafael Monteiro, sem dúvida muito acima do nível médio pela inteligência e pelo saber; mas no lugar mais alto pela segurança do carácter, pelo espírito de sacrifício, pela lealdade, que nada apela, a valores essenciais. É um contacto de que o grupo sairá robustecido e ainda mais confiante, se possível, no futuro, que é sempre fabricado – e quantas vezes contra o grande número, por homens como Rafael, firmes no seu isolamento, eloquentes no seu silêncio (o que não quer dizer que o nosso Amigo não grite mesmo quando necessário), pessoa mais que digna de continuar os que levantaram e defenderam aquele castelo e aquela cerca. Por tudo isto, e pelo (?) feito de participar do grupo, iria a Sesimbra com todo o empenho e todo o prazer, simplesmente, sábado, domingo, são dias difíceis para mim, sobretudo o domingo, reservado a visitar pessoas de família que estão doentes (?) num restabelecimento possível (?), e a ver um pouco o único neto meu que vive em Lisboa. E, nos dias de semana, as coisas têm sido tão estritas, que nem tenho tido possibilidade de visitar Rafael Monteiro ou de o ver no café: é chegar de camioneta, enfiar para os gatos, correr para a camioneta. Não há nada como estar reformado para não ter tempo. De qualquer modo, muito obrigado pela carta – e é como se fosso convosco.

Abraço afectuoso do

Agostinho



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